Por Adriano Alves

Leia aqui a primeira parte

Biografia insuficiente para o ser inacabado

A dialética “real x imaginário” em Milan Kundera é um recurso adequado para a concepção do romance do tcheco, que investiga o campo inexplorado das possibilidades da existência. O romancista transige com experiências e possibilidades do ser às quais a imaginação fecunda. A verossimilhança e acontecimentos triviais da vida pessoal do autor como tais enquanto âncoras do real não comparecem em suas obras porque não é da realidade imediata de tipo descritiva que ele trata, mas da apreensão da “problemática existencial” dos personagens oculta nas entrelinhas das possibilidades do ser, da ambição pela apreensão e descoberta de um aspecto desconhecido da existência. Pois a pretensão do romancista é a apreensão do ser em uma totalidade para a qual as possibilidades realizadas não são mais que uma fração do ser, sua fração realizada. Mas o ser é também suas possibilidades não realizadas. Contra isso o biografismo e o imperativo exterior de um dogma formal como a verossimilhança são obstáculos. Por isso a autonomia de seus romances em relação a sua vida pessoal, à história e a dogmas formais realistas é absoluta. O que, de sua vida, está em sua obra, não são seus fatos, seus casos de vida habitual enquanto tal, não é o romancista como filho de um corpo materno […] mas de uma situação, suas situações existenciais com todas as aberturas de sentido e possibilidades prontas a serem descobertas. A vida de um romancista como Milan Kundera só pode ser a chave decodificadora de sua obra na medida em que e quando ele é seu próprio personagem, mas, ao passar à condição de personagem, a exploração romanesca da existência – e não de sua vida pessoal ou de suas ideias – é a resposta de si mesma.

Não obstante a confusão entre a disposição do romancista de sua própria existência para a análise e o alargamento das possibilidades existenciais do homem e de seu mundo com uma representação ficcional de suas opiniões pessoais, que ignora a posição soberana do romance exigida para a sondagem do campo das possibilidades humanas, de tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz [1], que estão além de uma expansão dos conteúdos do autor como simples escritor, é a independência do romance em relação ao romancista que permite que a existência enquanto experiência transcenda a vida particular do autor e por isso a biografia pode, no máximo, quando mais que trazer curiosidades pontuais, ser iluminada pelo romance. O romance tem autonomia em relação à vida pessoal do romancista na medida da relação intrínseca que tem com sua vida como experiência e como potência do ser.

Um romancista no romance?

Milan Kundera, no entanto, é um autor de paradoxos. Aos mesmos eventos em que é experimento romanesco de si mesmo unimos a dimensão de seus personagens, que ele chamou de seus “egos experimentais”, na condição de quota romanesca e manifestação fragmentária de si, como estilhaços do romancista aqui e ali. Nessas experimentações estariam traços, frações dispersas e incompletas de sua própria experiência como instâncias, aproximações exploradas e alargadas por meio de seus personagens. A palavra “experimental” aqui não é gratuita e revela mais que sua condição de laboratório de si mesmo; diz respeito, também, à experimentação e exploração ficcional de suas situações, seus atos no mundo, nos personagens. Os “egos experimentais” do romancista são, assim, algo mais que o puro imaginário ao qual ele se referiu em Dom Quixote, personagem quase impensável como ser vivo [2]. Como experimentações de um “eu” – Christian Salmon afirma que “a insustentável leveza do eu” é a obsessão de Kundera desde seus primeiros escritos – seu romance segue um movimento exódico que parte da projeção de um eu na busca, que se manifesta nos personagens como expressões das potências do ser e do mundo, cuja direção é um movimento axípeto de introjeção, reencontro desse eu nas descobertas das possibilidades do mundo como frações do ser realizadas no romancista. Na arte do romance as experimentações são em primeira pessoa.

Um romancista no romance

Na literatura, a história contada, testemunho do autor, expressa ainda outra verdade sobre esta natureza de vínculo entre o autor e sua obra: o que se conta, atravessado pela subjetividade do autor – mesmo um romancista -, não pode ser inteiramente acessado senão por participação. O conhecimento literário é o tipo de saber que não se apreende apenas pela distância objetiva do intelecto e pelo domínio conceitual – particularmente na obra do tcheco -, mas impõe algum nível da participação do autor. Mesmo o leitor é instado a viver a história que lê. Flaubert, absolvido pelos tribunais e “cancelado” pela moral puritana da sociedade francesa do século XIX, quando perguntado, durante o julgamento, sobre seu modelo para a personagem Emma Bovary, teria respondido “Madame Bovary sou eu”. A afirmação, dita ou não dita, é significativa. À luz dessa perspectiva, Bovary não é a representação ficcional da vida pessoal de Flaubert, mas descoberta e experimentação de uma dimensão do ser como possibilidade do mundo – e do autor – no ato composicional da personagem. O romance de Flaubert transcende o contorno vulgar do biografismo para ganhar nuances existenciais que retiram o romancista da cômoda posição mediúnica que não implica a carne e o espírito do escritor no que escreve. Observar seu objeto por muito tempo implica ser observado por ele.

Embora Kundera ressalte que o romance não é uma confissão do autor [3], assume que conheceu e viveu todas as situações que descreveu. Dessa vivência, se de nenhuma delas saiu o personagem que é ele próprio – outra conjectura do romancista que, suponho, deve ser relativizada -, se desenvolve uma relação com a literatura que dá a seus romances o caráter singular de busca e descoberta. Toda a parte ensaística sobre o kitsch em A insustentável leveza do ser parece iluminar a personagem Sabina de forma muito particular. O ensaio é a voz do romancista que deseja compreender seus personagens a partir de sua “problemática existencial”. Muito embora o romancista admita estar mais próximo de outro de seus personagens [4], Sabina, a inimiga declarada do kitsch, é uma fração romanesca de uma possibilidade realizada de Milan Kundera. A personagem é seduzida pela ideia de traição, mas a traição, sob seu código existencial, é trair a ordem e partir para o desconhecido. Milan Kundera passou pela poesia e pelo cinema, mas abandonou ambas as carreiras pelo romance. Duas traições do romancista que ecoam nesse ego experimental e fragmento expandido do autor, Sabina contra o Kitsch está em Kundera contra o Gênesis como ideal estético do acordo categórico com o ser (o personagem Franz pode ser uma de suas possibilidades superadas); da mesma forma, os pensamentos e a ternura de Teresa pela cadela Karenin estão nos pensamentos e na ternura de Kundera pelo Nietzsche do episódio do cavalo de Turim; e o repúdio de Sabina por todo extremismo está no repúdio do romancista pelo totalitarismo, insulto profundo à alma do romance. Relações explícitas na obra, a problemática existencial desses eventos está tematicamente unida. Que o romance tal como concebido por Kundera é uma potência imensamente maior que o mero eco das posições pessoais do autor, não resta dúvidas. Mas isso não exclui a clareza paradoxal de que aqui tocamos na dimensão de suas possibilidades realizadas presente em fragmentos experimentais de seus personagens – ainda que não se confundam com a representação ficcional de suas crenças e opiniões na medida em que dizem respeito à experiência e não a quem experimenta. A concepção dos personagens como egos experimentais e as experimentações do próprio romancista como “personagem” de seus romances dão indícios das condições elementares para uma reconsideração de mero estatuto lógico das possibilidades do autor para um estatuto ontológico.

História, atitude e engajamento no romance

Kundera afirma que o código existencial dos personagens não é estudado ‘in abstracto’, ele se revela progressivamente na ação, nas situações [5]. Numa de suas reflexões em A arte do romance o tcheco afirma que o lírico e o épico ultrapassam o domínio da estética e que representam duas atitudes possíveis do homem a respeito de si mesmo, do mundo e dos outros. Daí, por exemplo, uma “atitude lírica” em que o lirismo, descolado de seu aspecto abstrato, ganha uma dimensão existencial enquanto modo de agir ou de ser no mundo. Um modo caracterizado pelo entusiasmo e o adesismo acrítico que Kundera retrata como a inocência com seu sorriso sangrento [6]. Numa outra reflexão em A insustentável leveza do ser, Tomas, um conquistador épico, aparece como o sedutor cuja causa é a posse incessante do que é único em cada mulher, o irrepetível, o singular do mundo. O autor-narrador destaca que é só na sexualidade que o milionésimo de diferença aparece como uma coisa preciosa, que não se oferece em público e é preciso conquistar [7]. O erotismo, assim, se apresenta como uma dimensão existencial do ser na possibilidade que é Tomas, e é, simultaneamente, uma chave para a compreensão do personagem e de seu mundo: o erotismo, em seu código existencial, é o desejo de apossar-se do mundo para o qual a volúpia do sexo é um meio. É possível pensar do mesmo modo outros elementos essenciais de seus romances e personagens, como o humor, a imaginação, a tragédia, o kitsch, o peso e a leveza, a força e a fraqueza etc. Tais afecções nunca são apresentadas de forma abstrata, sem seu personagem, mas se mostram como atitudes possíveis do ser que ultrapassa seu aspecto psicológico para realizar-se como experiência do mundo. É o modo como também a história tem seu lugar distinto na obra do tcheco. Concebida como uma dimensão histórica da existência humana [8], é a expansão de uma situação existencial humana que projeta sobre os homens um todo mutável e indivisível cujo caráter cronológico despeja sobre sua vida o peso teleológico de uma série abstrata infinitamente maior que sua existência, sob o qual desaparece a natureza ambígua das coisas humanas. Mas a que ficam reduzidos os problemas humanos quando considerados sob a escala macrocósmica da história? A sua função social, à luta política?, pergunta o romancista. Os “cupins da redução” não encolhem as possibilidades da existência abstraindo e ampliando a escala da consideração dos problemas, mas submetendo aquelas a estas. Junto ao episódio do sequestro do líder tcheco Alexander Dubcek pelas autoridades soviéticas e sua subsequente exposição fragilizada diante do povo, que sob a luz diáfana da sabedoria do romance e da história do ser revelava a fraqueza humana como “categoria generalizada da existência”, o romancista examina a Primavera de Praga, a tentativa de reforma das estruturas coercitivas do estado, como o desfecho de uma duradoura situação existencial humana e fundamental em que o acontecimento não foi aquele que entrou para os livros de história como um dos maiores eventos políticos do século XX, mas o divórcio entre o homem e seu ato, a ação vã que se perde no tempo sem possibilidade de resgate. A existência enquanto situação humana, portanto, está em primeiro plano quando a história nem é mero cenário e nem causa determinante, mas a própria situação humana. Kundera afirma que depois de Balzac o ser tem caráter histórico. Quer dizer, a extensa obra do grande escritor francês foi uma atitude histórica para a longa marcha do romance. Atitude de cuja herança, segundo Milan Kundera, o romance não pode mais se desfazer. Possíveis desdobramentos desta tese nos sugere implicações macro-históricas dos micro-acontecimentos humanos para a cultura e suas formas. Para o romance que concebe a história como uma dimensão histórica da existência humana, não é exatamente o caráter coletivo dos atos históricos, mas um modo de agir, uma forma de atitude como possibilidade da existência que pode marcar um arquétipo estético, social, político, psicológico ou histórico capaz de distinguir uma forma ou mesmo um período inteiro da cultura? É um ponto de vista que nos autoriza a pensar Dostoievsky como uma atitude psicológica na literatura, Nietzsche como atitude trágica na filosofia ou Marx como uma atitude política na história. O ponto aqui é a psicologia, a tragédia e a política como atitudes, modos do ser, ou seu “código existencial” – e não como disciplina, conhecimento ou formas estéticas abstratas e exteriores – para avaliar o ser, sondar existência, e não a história. O escritor e os filósofos seriam manifestações de certas afecções do ser, o psicológico, o trágico e o político, que regem uma atitude grávida de seu padrão estético, social, político, psicológico ou histórico sob a síntese de dois momentos ativos na atitude: o agir e o pensar.

Como o lirismo e a épica deixam a esfera abstrata do gênero literário e da estética para atingir a condição de uma atitude humana, podemos pensar a obra de Milan Kundera como uma atitude propriamente romanesca do tcheco na literatura – que corresponde à posição existencial mais íntima do autor como negação da atitude lírica em favor de uma atitude irônica – cujo enfoque no enigma da existência, que parte do microcosmo da existência para reencontrá-lo no macrocosmo da história como dimensão existencial possível do ser, emancipa-se das exigências de engajamento sem abrir mão de suas implicações históricas. Não pode, portanto, ser confundido com outra espécie de cupim da redução. Kundera afirma que o enorme alcance social, político, “profético” dos romances de Kafka reside justamente no seu “não engajamento”, isto é, em sua autonomia total em relação a todos os programas políticos, conceitos ideológicos, prognósticos futurológicos [9].

Sonhos, presságios e liberdade do ser

Apenas o romance compreendido em si mesmo, o romance que sonda o campo profundo do ser em sua potência tem de fato algo para dizer que apenas ele pode dizer. O romance que tem de ficcional apenas a história que conta, mas está submetido a um rigor que lhe é exterior, não tem nada novo para dizer porque sujeita e limita suas possíveis descobertas aos imperativos de dogmas formais externos. Se a morte dos personagens é narrada num capítulo antes do fim da história, quando reaparecem como se nunca tivessem morrido, é porque a ruptura cronológica quer comunicar algo ao leitor que a cronologia, signo da verossimilhança, não pode fazer. O romance não perde o alcance da problemática existencial nas possibilidades do ser em nome da “verossimilhança”. Sua filiação à tradição de Cervantes não se dá pela mera presença do sonho e da imaginação, e nem a estranheza destes formam uma fronteira intransponível entre autor e personagem. Milan Kundera dá pistas de que o sonho e a imaginação devem ser tomados em sua literalidade em sua obra, quer dizer, devem ser considerados em si mesmos e não como metáforas. É razoável supor que se o campo da existência ultrapassa a fronteira das possibilidades realizadas, tomar o sonho e a imaginação como meras representações relativas ao campo das possibilidades realizadas é ignorar o prenúncio e os vislumbres que vêm do lado de lá da fronteira. Mas o componente onírico é também uma declaração romanesca da libertação do sonho e da imaginação do cárcere da razão e seus imperativos em nome da busca e da descoberta do homem cuja situação existencial está projetada no tempo como possibilidade para além do verossímil encadeamento lógico dos acontecimentos. Há pouco tempo, enquanto penava num leito de hospital, li Aurélia, ou o sonho e a vida, de Gérard de Nerval, escrito sob total domínio da esquizofrenia. A vertigem sonhadora da narrativa é a loucura libertadora do poeta sucedida pelo pesar de ver o destino da alma libertada numa visão e a crise arrasadora depois de tentar recuperar a razão. Não é a crise que levou Dom Quixote à morte? De Cervantes a Kafka, de Dom Quixote ao agrimensor K, Kundera vê a linha de continuidade que forma no tempo uma história cujo liame não é a cadeia dos grandes acontecimentos, mas a sucessão de descobertas das possibilidades humanas que desencadeia a extensa trama do enigma existencial do ser. Esta é, também, a história do romance cujo valor, para o romancista, só pode ser medido pelo alcance de sua descoberta. Que acompanha a epopéia humana e a história fenomenológica do mundo e pode nos ver em pleno salto no tempo: não é o próprio Dom Quixote que, após três séculos de viagem, regressa à aldeia disfarçado de agrimensor? [10], pergunta o tcheco. Quem sabe Dom Quixote, antes de voltar disfarçado de agrimensor, não padeceu de esquizofrenia, trocou sua Dulcineia por Aurélia e reviveu aquela loucura libertadora antes de morrer outra vez, desta vez enforcado?

Paradoxos terminais e uma ontologia das possibilidades

Milan Kundera dirá que o romance, em que pese suas profusas possibilidades, morreu não pelo esgotamento de suas forças, mas por ter sido surpreendido num mundo que não é mais o seu. A história do romance, ou a sucessão de descobertas das possibilidades do ser, se choca com o sentido de unidade subjacente à linha do tempo da história e ao encadeamento causal e cronológico de estruturas e forças supra-humanas que transcendem a existência. Um mundo de certezas distante da ambiguidade da existência se abateu sobre a vida humana. Paradoxalmente, a racionalidade histórica trouxe consigo o colapso da razão. Os frankfurtianos chamaram de “razão instrumental” à razão que opera sem considerar a finalidade, operando apenas a funcionalidade do sistema. Milan Kundera encontrou nessa hipertrofia do racional o que chamou de paradoxos terminais. É razoável supor que o adjetivo “terminal” designe uma situação que não se conclui sem colapsar. Há quase quarenta anos o romancista disse que ao sonho moderno de uma humanidade dividida que reencontraria enfim a paz na unidade se antepôs um todo indivisível assegurado pela guerra. A internet, que conteria em si uma renovação dessa promessa, ou ao menos uma nova esperança da unidade e concórdia universais pela conexão mundial dos homens através de uma rede internacional de comunicação instantânea, traiu essa promessa aprofundando a fragmentação e transformando-se em seu oposto. Foi esse o último eco desse antigo ideal humanista de unificação a naufragar? A última manifestação do divórcio entre o homem e seu ato, seu sonho e sua imaginação como êxtase do paradoxo?

*

Sob a perspectiva da história do ser, a história do romance é a história da sucessão de “descobertas”. Descobrir: ver o que estava encoberto, em oposição ao acontecimento virginal, sem a condicionante das possibilidades. Para o grande romancista tcheco o ser é mais que suas possibilidades realizadas. Concebido em sua plenitude, é ainda o campo possível de todas as suas possibilidades não realizadas com o mundo (o in-der-welt-sein de Heidegger, “ser-no-mundo”), de “tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz”. Kundera cita os versos do poeta seu conterrâneo Jan Skacel:

Os poetas não inventam os poemas

O poema está em algum lugar do passado

Há muito tempo ele está lá

O poeta apenas o descobre

E em seguida explica: imutável, “o poema” nos espera, diz Jan Skacel, “há muito muito tempo”. Ora, no mundo da mudança perpétua, o imutável não é pura ilusão? Não. Toda circunstância é causada pelo homem e não pode conter senão aquilo que está nela; podemos portanto imaginar que ela existe (ela e toda a sua metafísica) “há muito muito tempo” como possibilidade humana [11]. O romancista encontra o elemento imutável na possibilidade que anuncia cada descoberta e cada acontecimento. Nessa luta com as possibilidades do ser a história sempre claudica atrás do “poema” na medida em que é a realização de uma “anterioridade”. Não há nada novo, nada que a história coloque no tempo que já não estivesse aí como possibilidade humana. A história não inventa, afirma o tcheco, ela descobre o que o poema mostrou antes como “ofuscamento”. Podemos pensar que o que é imutável não tem passado, é algo que existe sempre no presente. O que é imutável, portanto, o que liga Dom Quixote à K., tem um peso sempre presente, e essa presença eterna do imutável, do poder ser, é a ontologia das possibilidades na arte do romance.

Paroquialismo antropocêntrico

O capítulo sobre a cadela Karenin em A insustentável leveza do ser mereceu de minha parte como leitor uma consideração particular na medida em que me importa a atitude humana em relação aos animais. A abordagem original de Kundera da relação entre Karenin e Teresa reabre e desdobra a trama intrincada em que a humanidade se meteu e o paroquialismo antropocêntrico, nas palavras de Italo Calvino, em que se confinou. A modernidade iluminista, pretenso renascimento humano na maioridade, triunfou cravando estacas humanistas entre as espécies. Se membros da comunidade judaica interditam o uso da palavra holocausto e integrantes do movimento negro interditam o uso da palavra escravidão para fazer referência a seres viventes de outras espécies não é porque achem que estes não sofreram com eles as dores do mundo. Nenhum judeu ignora o sofrimento dos negros, nenhum negro ignora o sofrimento judeu e nenhum deles ignora o sofrimento dos animais. A sanção pode ter uma natureza metafísica: não podem compartilhar seu martírio fundador sem apagar as fronteiras que não podem ser ultrapassadas sob o risco de tocar a insustentável leveza do ser, estado difícil da existência [12]. Não é pouco se imaginarmos que, na sofisticada reflexão de Milan Kundera, esta condição levou Yakov, filho de Stalin, ou “o filho de Deus”, ao suicídio. O romancista resgata um fato esquecido pela historiografia que antecedeu o assassinato de pessoas indesejáveis do regime tcheco durante a Primavera de Praga, que foi a campanha oficial pelo assassinato dos cães da cidade. Fato desprezado pela história, mas que para o autor são de relevantes “consequências antropológicas”: ao assassinato dos cães se seguiram os assassinatos de homens. Aceitamos mais facilmente assassinar um cão que assassinar um homem, mas se adestram homens tão facilmente quanto se adestram cães: pelo costume, pelo treino, pelo hábito. O zoocídio preparou o homicídio. Tal como o ambiente dos lager nazistas e dos gulags soviéticos puderam ser vividos e antecipados por Teresa em suas relações privadas com a mãe [13].

Já escrevi antes em algum lugar que o humanismo que se desenvolveu com a modernidade é um humanismo predatório de base antitética que não pôde se livrar de uma oposição à natureza por um amor a tudo o que é humano entendido por meio do contraste, de uma exacerbação da diferença. Os animais não nos importam certamente porque não nos importa o nosso próprio destino, mas, educados na tradição que não pode distinguir o espírito sem desprezar a carne, acima de tudo porque não nos importa a nossa própria besta.

*

Antes de sermos esquecidos seremos transformados em kitsch. O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento (A insustentável leveza do ser)

O que restou de Milan Kundera

Tenho a impressão de que Kundera, que começou como poeta e passou pelo cinema, tenha se tornado romancista para escapar à tolice prepotente da “idade lírica”. Não por uma escolha repentina, evidentemente, mas por um caminho naturalmente construído a partir de suas tendências pessoais. A poesia e o cinema são formas artísticas que favorecem particularmente a expressão de toda a carga emocional que trazemos; quando essa carga encontra seu objeto de realização, o entusiasmo adesista é quase irrefreável. Mas o romance, como forma mais sóbria, permite ao romancista uma expressão e elaboração maior da atitude crítica. Escolher o caminho da independência iluminado pela incerteza, no entanto, tem seus riscos e custos. Decerto que apenas absorver ingenuamente a weltanschauung de um autor depois de ler sua obra é uma tolice, mas não deveria desobrigar o leitor da experiência de reconsiderar as coisas a partir desta relação, já que inverter a coisa e sobrepor sua própria visão de mundo à obra lida é de uma tolice provavelmente pior. Aliás, o exercício de transpor fronteiras para sondar e compreender o que está do outro lado é um recurso da “arte do romance”. A morte de Milan Kundera foi ocasião para manifestações de reverências pelo mundo, e aqui não foi diferente. Mas alguns leitores fizeram de sua própria leitura do mundo, em arroubos opostos ao espírito romanesco do homenageado – um grande amigo diria que opostos ao espírito tcheco -, estampa de suas homenagens à obra do autor. Tal fato não se restringiu unicamente ao leitor comum, mas resvalou igualmente na forma mentis acadêmica. Era inevitável, então, que depois da morte do imortal se precipitasse sobre sua memória a pergunta de seu célebre romance, que sonda o apagamento kitsch que ultrapassa a existência: o que restou de Milan Kundera? Estranha pergunta que habita sua obra, recai sobre sua alma e o resgata como personagem possível de seus romances.

*

Da lúcida consciência da insuficiente clareza destas páginas, dedico-as à memória de um inesquecível irmão e amigo, que partiu voluntariamente há 13 anos por uma dessas causas shakespeareanas cujo amor e morte dilaceram o espírito, e que no fogo da última chama deixou os versos de Raul Pompéia: viver a intensidade mortal da vida, arder, arder e morrer, como o fogo que cresce, cresce e de si mesmo morre, enfermo do seu triunfo [14]; e a um grande amigo e irmão, o maior que alguém poderia ter, desaparecido há 11 anos. A meu ver, ainda hoje, sucumbiu voluntário e soberano ao paroxismo da insustentável leveza do ser, estado existencial maior que qualquer doença, e que irrompeu de uma atitude possível diante da vida. Esta é uma impressão absolutamente pessoal, mas de quem compartilhou o mesmo estado de espírito dos últimos anos. Os tempos de nossa amizade e tudo o que vivemos transcenderam a saudade e ainda hoje ele vive comigo.

Notas

[1] Kundera, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 46.

[2] Ibidem, p. 38.

[3] Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986. p. 222.

[4] “O quadragenário, diga-se de passagem, me é o mais próximo de todos os meus personagens”, in A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 118. O quadragenário é um personagem do romance A vida está em outro lugar.

[5] Kundera, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 35.

[6] Ibidem, p. 128. O tema é abordado e desenvolvido no romance A vida está em outro lugar.

[7] Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986. p. 201.

[8] Kundera, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 40.

[9] Ibidem, p. 110.

[10] Ibidem, p. 16.

[11] Ibidem, p. 109.

[12] Esta reflexão não ignora a legitimidade das alegadas razões para tais sanções, apenas alarga perspectivas sobre o assunto a partir da natureza dos problemas e do olhar para eles que aqui se propõe.

[13] Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986. p. 140.

[14] Pompéia, Raul. Canções sem metro. Rio de Janeiro: Typ. Aldina, 1900. Ex Libris José Mindlin.

13 COMENTÁRIOS

  1. confesso que toda vida quando sai algo sobre Kundera aqui no PP fico me coçando esperando um comentário do JB, que não vem. Curioso.

    o que pensa João Bernardo sobre Kundera?

  2. Anna Karenina,

    Li apenas um livro de Milan Kundera. Porquê? Não sei. A vida é curta e eu gosto de reler o que já li.

    Mas como não pude responder ao que você perguntou, vou responder ao que não perguntou. Se você me dissesse: vou morrer, diga-me o que hei-de ler que me explique tudo sobre a vida. Eu dizia-lhe para ler Os Irmãos Karamazov. Mas você replicava: não tenho tempo, restam-me só dois dias de vida. Eu dizia: leia La Conspiration, de Paul Nizan.

    Tenha um bom Ano Novo (que não vai ter).

  3. Hahaha

    Certamente leu a Insustentável Leveza.

    Feliz ano novo a todos e também ao João Bernardo.

  4. JB concrescentou Anna a karenin. Depois, cortou rente e finalizou pegando pesado.
    A navalha de Okham ficou cega, frente à peixeira do JB.

  5. Ler o comentário do João Bernardo me fez pesquisar a obra citada de Paul Nizan, mais que o canônico Dostoievski. Que buscarei amanhã, achei baratinho num sebo em São Paulo. Me parece que ele sofreu algo parecido em natureza, embora sem o mesmo dramático desfecho, com o que aconteceu aos tchecos Záviš Kalandra e Milada Horáková, entre outros, cujo trágico destino preencheu os pensamentos e a obra de Milan Kundera. Mas um livro capaz de nos desvelar a vida nos últimos suspiros deve ser lido. Valeu, JB!

  6. Valeu pelo link, Ulisses. Mas peguei a tradução brasileira de “A Conspiração” e comecei a ler. Até agora as primeiras impressões me apresentam um livraço, embora não possa saber se os desdobramentos me permitirão manter essa opinião. A leitura da sinopse na contracapa desta edição da Rocco me causou impressões e auspícios não muito positivos, diria que reduziu minhas expectativas. Mas nada como a leitura para fundamentar a crítica. De qualquer forma o conselho do João Bernardo não foi em vão. Mesmo que os dois últimos dias de vida de um homem só duvidosamente sejam capazes de lhe revelar tudo o que a existência precedente lhe negara sobre a vida, lembro do purgatório das ilusões que foi a morte de Ivan Ilitch: não morrer o mesmo homem que viveu seguramente formou a massa dos pesadelos que não o deixavam dormir, mas talvez tenha sido também o sonho derradeiro do sono eterno.

  7. É intrigante observar a referência de João Bernardo a Paul Nizan, um autor relativamente obscuro no contexto literário brasileiro, ao destacar sua obra como uma esclarecedora abordagem sobre a vida. A curiosidade biográfica em relação aos autores cujas obras apreciamos é uma prática recorrente, geralmente antecedendo a imersão em suas produções. Minha própria curiosidade em relação à biografia de Paul Nizan levou-me a descobrir que, em sua juventude, ele esteve afiliado ao Le Faisceau, partido fascista francês liderado por Valois. Tal observação suscita uma reflexão intrigante sobre a trajetória política do autor, considerando o paradoxo inicial de sua afiliação fascista e a subsequente adesão ao PCF e participação na Associação de Escritores e Artistas Revolucionários, associada a figuras proeminentes como André Gide, Romain Rolland e Louis Aragon.

    O caso de Nizan evoca a memória de outros escritores notáveis, como Ezra Pound, que também iniciou sua militância política no espectro fascista, e Louis-Ferdinand Céline, um celebrado fascista na França. A questão fundamental que se apresenta é a extensão na qual é possível dissociar as convicções políticas do autor de sua produção literária. Este dilema, caracterizado pela evolução ideológica de Nizan e casos análogos, incita uma reflexão mais profunda sobre o impacto potencial das convicções pessoais na tessitura e interpretação de obras literárias.

  8. Francisco Gonzaga…Nizan se aproximou das fileiras fascistas com 20 anos, provavelmente ainda no processo de descobertas e conhecimento da juventude. E parece que a estadia foi breve. Seu primeiro livro só é publicado anos depois de sua adesão à esquerda, de modo que convicções políticas e produção literária não deviam estar em conflito óbvio e aberto. O caráter, o tipo e as consequências dessa adesão são trazidos à baila e discutidos na obra de Milan Kundera.

  9. Primeiramente preciso deixar claro que não sou critico literário ou mesmo conhecedor de nada, a impressão que tento expressar dá-se unicamente
    através do prisma de um mero leitor.
    Após ler a primeira parte de seu ensaio sobre A Insustentável Leveza Do Ser, de Milan Kundera, achei tão bem elaborada (e até melhor que a obra), que resolvi ler novamente, tentando observar algo que possivelmente eu não houvesse captado quando li, confesso que ler pela segunda vez foi um tanto mais difícil, visto que li em PDF e sou totalmente avesso a ler qualquer coisa na tela, preciso do contato físico com o papel, tatear, sentir o odor (tivesse eu nascido antes de Johannes Gutenberg, acho que torceria o nariz para os livros e ficaria com os rolos de papiro). Achei a segunda parte do ensaio tão bem elaborada quanto a primeira e me atrevo a dizer, talvez até melhor, visto que concluiu sua análise.
    Mas novamente a obra não me disse nada, peço perdão pelo que possivelmente ache uma blasfêmia, mas achei inócua.
    A obra “A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera é amplamente reconhecida por sua complexidade e profundidade, explorando temas filosóficos, existenciais e políticos. No entanto, é compreensível que nem todas as obras ressoem da mesma maneira para conosco, os leitores. A obra é bem elaborada e escrita, mas novamente não me causou nenhum impacto, é válida e representa uma experiência pessoal de leitura.
    A narrativa intrincada de Kundera, que entrelaça as vidas de seus personagens em um contexto histórico complexo, não conseguiu me conectar emocionalmente. A “insustentável leveza” abordada na obra, explorando a natureza efêmera e aparentemente insignificante da vida pode, a meu ver, ser interpretada de maneiras diversas, e a ausência de um impacto pode ser resultado de uma desconexão pessoal com essas reflexões.
    Por outro lado, a sensação de inocuidade que mencionei, pode estar relacionada à falta de identificação com os personagens ou à falta de clareza nas mensagens transmitidas pela trama. A complexidade filosófica de Kundera pode tornar-se excessiva para alguns leitores, levando a uma experiência de leitura que, apesar de admirável em sua construção, não se traduz em uma compreensão profunda ou ressonância emocional.
    É importante destacar que as reações à literatura são subjetivas e variam de pessoa para pessoa. Nem todas as obras irão impactar da mesma forma em todos os leitores, e é válido expressar diferentes opiniões sobre uma obra literária. Minha visão crítica oferece uma perspectiva honesta, pessoal e individual sobre “A Insustentável Leveza do Ser”, tentando contribuir para a diversidade de interpretações que uma obra literária pode suscitar.
    Abraços

  10. Kundera é um autor plural, de variados prismas, pode ser lido de diferentes óticas. Na Insustentável leveza do ser temos perspectivas históricas, filosóficas, psicológicas e comportamental, crítica e mais outros aspectos – basta lembrar de capítulos como o de Bethoven (muss es sein, es muss sein), sobre o filho de Stálin na prisão, sobre as palavras não compreendidas e outros; a possibilidade de pensar e ver para além das personagens do romance, que se tornam pano de fundo para todas as ideias do autor.
    Aproveitei a sugestão citada em um dos comentários e li A conspiração, de Paul Nizan.
    Assim como Kundera, ele também explica as motivações não ditas do personagem que se torna muito mais próximo do leitor, já que ele é mostrado em todas as suas camadas possíveis enquanto ser vivo que é – social, psíquico e histórico, o que faz com que o leitor se identifique com o personagem, acolhendo-o, por tê-lo compreendido de modo integral.

  11. Pascoal Nils…valeu pelo retorno! As experiências do leitor e a obra literária têm sempre algo de subjetivo – mas nunca apenas subjetivo -, não poderia ser de outra forma. Na teoria literária há mesmo a tese de que uma obra é composta pelo autor e pelo leitor. Quanto a ver uma possível blasfêmia em sua observação, sossegue a peruca, não me passaria pela cabeça algo parecido. Primeiro porque o autor que se vire com seus leitores, segundo porque acho que o adjetivo talvez se adequasse melhor a uma leitura que tirasse da obra o que ela não disse, mas o senhor registra uma impressão pessoal de indiferença pelo que caracterizou como inocuidade. Quer dizer, cópula infecunda, estéril semeadura, solo desértico. Donde se conclui apenas a sobra do primeiro nível objetivo da narrativa, que é a história de amor lá contada. O que acho que posso lhe garantir é que a obra não é redutível a isso e que essa redução é certamente a razão de seu lugar como best seller.

    Sobre uma possível falta de clareza, aí não tem muito jeito. O romance não é um tratado filosófico ou artigo científico, mas uma obra artística cuja dimensão hermenêutica pressupõe a contraparte subjetiva da construção narrativa. Se bem que as entrelinhas de Kundera estão nas linhas mesmo.

    Abraços fraternos e eternos!

  12. Ananta Martins, valeu pelo retorno. Sobre Milan Kundera, concordo com essa pluralidade. Sondar a existência formulando hipóteses a partir das situações humanas é uma arte que supõe outras hipóteses possíveis. A tragédia de Yakov, filho de Stalin, é a metáfora do peso e da leveza da existência cuja possibilidade como causa o herdeiro desprezado de Stalin viveu em seus dias finais.

    Sobre Paul Nizan, eu também acatei a dica e li “A Conspiração”. La Cospirazione – il fallimento di un sogno rivoluzionario é o título da tradução italiana. O subtítulo é algo como “o fracasso de um sonho revolucionário”. Um fracasso, no entanto, que não resulta do embate com o inimigo extrínseco, mas das ruínas dos sonhos da juventude e da erosão dos idealismos, pontos de contato com a obra de Milan Kundera. Não é uma obra de concessão, mas o contrário, é uma obra corajosa, sobretudo no contexto histórico em que foi escrita, nos prenúncios da Segunda Guerra Mundial. Sartre e Nizan foram amigos, ao que parece Nizan fora seu grande amigo da juventude. O ilustre filósofo lhe dedicou belas páginas na comovente homenagem que fez no prefácio da edição de 1960 da primeira obra de Nizan, “Aden, Arábia”, vinte anos depois de sua morte no campo de batalha contra os nazistas. Ali ficamos sabendo que provavelmente a obra de Sartre é devedora da obra de Nizan, não o contrário, já que este escreveu antes e na época em que Sartre admitiu ser um “alienado”. Foi uma grata surpresa ler Nizan. Eu que tinha enconstado em casa “Aden, Arábia” numa edição antiga, soterrado sob uma pilha de livros. Será uma de minhas próximas leituras.

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